"Todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada, ou qualquer lago seja construído é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardim por dentro, não planta jardim por fora. E nem passeia neles".Rubem Alves

sábado, 15 de fevereiro de 2020

À Saudade - Almeida Garrett



Arte by *Ivan Aivazovsky*

Saudade! gosto amargo de infelizes,
Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d'alma dilacera,
— Mas dor que tem prazeres — Saudade!
Misterioso nume, que aviventas
Corações que estalaram, e gotejam
Não já sangue de vida, mas delgado
Soro de estanques lágrimas — Saudade!
Mavioso nome que tão meigo soas
Nos lusitanos lábios, não sabido
Das orgulhosas bocas dos Sicambros
Destas alheias terras. — Oh Saudade!
Mágico nume que transportas a alma
Do amigo ausente ao solitário amigo,
Do vago amante à amada inconsolável,
E até ao triste, ao infeliz proscrito
— Dos entes o misérrimo na Terra —
Ao regaço da pátria em sonhos levas,
— Sonhos que são mais doces do que amargo,
Cruel é o despertar! — Celeste nume,
Se já teus dons cantei e os teus rigores
Em sentidas endechas, se piedoso
Em teus altares húmidos de pranto
Depus o coração que inda arquejava
Quando o arranquei do peito malsofrido
À foz do Tejo — ao Tejo, ó deusa, ao Tejo
Me leva o pensamento que esvoaça
Tímido e acobardado entre os olmedos
Que as pobres águas deste Sena regam,
Do outrora ovante Sena. Vem, no carro
Que pardas rolas gemedoras tiram,
A alma buscar-me que por ti suspira.

 *Almeida Garrett* (1799-1854)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Novalis - Vincent van Gogh



Arte by *Vincent van Gogh*




Hinos à Noite

..."Outrora, quando vertia lágrimas amargas, quando, diluída na dor, a minha esperança se desfez e eu me encontrava sozinho sobre o estéril montículo que encerra em negro e estreito espaço a imagem da minha vida - só, como jamais alguém esteve, impelido por um medo indizível - inerme, tão somente com um único pensamento ainda, o da carência. - Quando olhava em meu redor em busca de auxílio, sem que pudesse avançar nem recuar, preso por uma saudade infinita a essa vida extinta e fugidia: - eis que da distância azulada - dos altos cumes da minha antiga bem-aventurança, veio um frêmito de crepúsculo - e de súbito romperam-se os vínculos do nascimento - a cadeia da Luz. Para longe de mim se voltou o curso do esplendor terreno e, com ele, o meu luto - e também a melancolia fluiu para um novo mundo, infundamentado - e tu, exaltação noturna, torpor do Céu, vieste sobre mim - todo o lugar se elevou no ar mansamente; e sobre o lugar pairou o meu espírito, desvinculado, de novo nascituro. Em nuvem de poeira se converteu o montículo de terra - e através das nuvens vi a fisionomia gloriosa da Amada. Nos seus olhos repousava a eternidade - prendi-lhe as mãos, e as lágrimas eram um laço cintilante, irrompível. Milênios perpassaram a caminho dos longes como intempéries. Suspenso do seu colo, chorei lágrimas de deleite pela nova vida. - Foi esse o primeiro e único sonho - e somente desde então tenho uma fé eterna e imutável, no Céu da Noite, na sua luz, a Amada."

"Sei agora quando será a manhã derradeira - quando a luz não afugentar mais a noite e o Amor – quando o sono for eterno e um sonho só inesgotável. Sinto em mim uma fadiga celeste – Longa e penosa foi a minha peregrinação ao Sepulcro Santo, opressiva a minha Cruz. A onda de Cristal, imperceptível aos vulgares sentidos, que jorra no seio obscuro do montículo de cujo sopé o terrestre caudal irrompe, quem dela alguma vez provou, quem esteve no cume das montanhas que delimitam o mundo e olhou para Além, para a nova terra, a morada da Noite – em verdade, esse não regressará jamais aos trabalhos deste mundo, à terra onde a Luz habita em eterna agitação.Esse é o que levantará no alto as tendas da Paz, o que sente a ânsia e o amor e que olha para Além até que a hora entre todas bendita o faça descer ao imo da nascente – por cima, flutua o que é eterno, reflui ao sabor de tormentas; mas tudo aquilo que o contacto do amor santificou escorre dissolvido, por ocultas vias, para a região do Além e aí se mistura, como os aromas, com os seres amados para sempre adormecidos.(…)

Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, Freiherr von Hardenberg

*Novalis*

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Esquecimento...Rubem Alves


Arte by *Leonid Afremov*


“O esquecimento, freqüentemente, é uma graça. Muito mais difícil que lembrar é esquecer! Fala-se de “boa memória”. Não se fala de “bom esquecimento”, como se esquecimento fosse apenas memória fraca. 
Não é não.
Esquecimento é perdão, o alisamento do passado, igual ao que as ondas do mar fazem com a areia da praia durante a noite.” 


*Rubem Alves*