Num dia que não se adivinha,
meus olhos assim estarão:
e há de dizer-me: «Era a expressão
que ela ultimamente tinha.»
Sem que se mova a minha mão
nem se incline a minha cabeça
nem a minha boca estremeça,
- toda serei recordação.
Meus pensamentos sem tristeza
de novo se debruçarão
entre o acabado coração
e o horizonte da língua presa.
Tu, que foste a minha paixão,
virás a mim, pelo meu gosto,
e de muito além do meu rosto
meus olhos te percorrerão.
Nem por distante ou distraído
escaparás à invocação
que, de amor e de mansidão,
te eleva o meu sonho perdido.
Mas não verás tua existência
nesse mundo sem sol nem chão,
por onde se derramarão
os mares da minha incoerência.
Ainda que sendo tarde e em vão,
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito: «N ã o».
E ondas seguidas de saudade,
sempre na tua direção,
caminharão, caminharão,
sem nenhuma finalidade.
♥
CANÇÃO DO MUNDO ACABADO
Meus olhos andam sem sono,
somente por te avistarem
de uma tão grande distância
De altos mastros ainda rondo
tua lembrança nos ares.
O resto é sem importância.
Certamente, não há nada
de ti, sobre este horizonte,
desde que ficaste ausente.
Mas é isso o que me mata:
sentir que estás não sei onde,
mas sempre na minha frente.
Não acrediteis em tudo
que disser a minha boca
sempre que te fale ou cante.
Quando não parece, é muito,
quanto é muito, é muito pouco,
e depois nunca é bastante...
Foste o mundo sem ternura
em cujas praias morreram
meus desejos de ser tua.
A água salgada me escuta
e mistura nas areias
meu pranto e o pranto da lua.
Penso no que me dizias,
e como falavas, e como te rias...
Tua voz mora no mar.
A mim não fizeste rir
e nunca viste chorar.
(Porque o tempo sempre foi
longo para me esqueceres
e curto para te amar.)
♥
HERANÇA
Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.
Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?
E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,
que experiência, ou consolo, ou premio, alcançarão?
♥
Conheço a residência da dor.
É num lugar afastado,
Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas,
Com umas imensas vigílias, diante do céu.
A dor não tem nome,
Não se chama, não atende.
Ela mesma é solidão:
Nada mostra, nada pede, não precisa.
Vem quando quer.
O rosto da dor está voltado sobre um espelho,
Mas não é rosto de corpo,
Nem o seu espelho é do mundo.
Conheço pessoalmente a dor.
A sua residência , longe,
em caminhos inesperados.
Às vezes sento-me em sua porta, na sombra das suas árvores.
E ouço dizer:
"Quem visse, como vês, a dor, já não sofria".
E olho para ela, imensamente.
Conheço há muito tempo a dor.
Conheço-a de perto.
Pessoalmente.
♥
A DOCE CANÇÃO
Pus-me a cantar minha pena
com uma palavra tão doce,
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade - e não pena.
Anjos de lira dourada
debruçaram-se da altura.
Não houve, no chão criatura
de que eu não fosse invejada,
pela minha voz tão pura.
Acordei a quem dormia,
fiz suspirarem os defuntos.
Um arco-íris de alegria
da minha boca se erguia
pondo o sonho e a vida juntos.
O mistério do meu canto
Deus não soube, tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
- Todos perdidos de encanto só eu morrendo de triste!
Por isso tão docemente
meu mal transformar em verso,
oxalá Deus não aumente,
para trazer o Universo de
pólo a pólo contente!
♥
♥ " Se desmorono ou se edifico
Se permaneço ou me desfaço
Não sei, não sei
-Não sei se fico ou passo."♥
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